JOSÉ ANTÔNIO DE OLIVEIRA – ZÉ CAMILO

 Já ouviu falar desse nome?

Com um pouco mais de esclarecimento todos saberão que se trata de uma das pessoas mais populares que residiram na nossa cidade. E não foi por pouco tempo. Foi mais de um centenário que esse vazantino viveu entre nós, para a felicidade da sua família e para o orgulho de todos.

Esse é o Seu Zé Camilo. Um dos carpinteiros mais afamados que já passou a sua enxó em um bálsamo, numa peroba, num tamboril ou em qualquer outra madeira de lei abundante na região, naqueles longínquos tempos.

Ninguém como ele para fazer e montar uma roda de carro de boi. Deixar as duas cambotas bem ajustadas no meão, dificultando ver a emendas onde se encaixaram as peças. O ajustamento das duas chedas com o cabeçalho, era uma das suas especialidades. Aliás, a especialidade dele era o fabrico de um carro de boi, desde a menor até a maior peça deste importante meio de transporte de antanho.

E não era somente no carro de boi que ele era mestre. Qualquer peça que pudesse ser feita por um carpinteiro, ele fazia com invejável maestria.

Um fato que marcou profundamente a sua trajetória, quando ainda jovem, foi o envolvimento dele com uma engenhoca de moer cana. É o que veremos mais adiante...

Dona Sanica

Ele que foi casado com a D. Antônia Pereira Maia.

 Êpa! Aí não está conjuminando. Que é essa D. Antônia Pereira Maia? Merece explicação.

 É a D. SANICA. Aí, sim! Muito conhecida...

Seu Zé Camilo e D. Sanica foram casados por um bom par de anos. Mais de setenta. Tiveram nove filhos; três faleceram ainda bebês. Sobreviveram a Maria (que nasceu gêmea de outro irmão, que durou apenas 18 dias), Terezinha, Lázara, José (Preto Camilo), Nair, Geraldo e Ana Rita, que ficou sendo a filha caçula, com a morte do seu último filho, que veio ao mundo sem completar o tempo normal de gestação.

 D. Sanica perdeu este filho, em consequência de um fato inusitado. Ela, mesmo estando grávida, acompanhava o marido nas suas diversas empreitadas pelas fazendas da região. Numa dessas, aqui no Jaburuzinho, onde hoje é a sede do Antônio Andrade, ele fazia um determinado serviço juntamente com o Virgílio Cláudio e seus filhos, José e João Cláudio.  D. Sanica, grávida de seis meses, lá estava cuidando de cozinhar para uma porção de peões.

Enquanto cuidava da lida da cozinha, improvisada no meio do mato, em um ranchinho rústico, desses de roça, ao mesmo tempo tinha de cuidar da filha mais nova, a Ana Rita. Nesse dia estava também na sua companhia a filha mais velha, Maria, que a auxiliava nas lidas caseiras e olhava a irmã.

Improvisaram uma caminha, forrada pelo coxonilho do pai e puseram a Ana Rita dormir, enquanto D. Sanica cuidava do almoço, que fervia numa grande panela de ferro.

A menina Maria foi quem viu primeiro aquela visão assustadora, mas conseguiu se conter. Mas quando D. Sanica avistou aquele quadro, se assustou bastante e ao correr em socorro da menina que dormia feito um anjinho, bateu o ventre na panela fervente e quase desmaiou. Nisso a serpente venenosa, uma cascavel, acabava de passar deslizando tranquilamente sobre o corpinho da menina, ganhando o outro lado do rancho.

D. Sanica chamou pelos homens que acudiram logo, matando àquela cobra e acalmando a pobre mulher. Mas a pancada na panela de ferro fervente deixou uma sequela que culminou no aborto do menino que carregava no seu ventre, aquele que seria o seu último filho. Era uma criança do sexo masculino.

Conheci todos eles e fui amigo de infância de pelo menos uns três. O Preto Camilo, o Geraldo e a Ana Rita. As outras eram mais velhas e logo se casaram, tiveram filhos. Mas viveram entre nós e sempre mantendo uma amizade de verdade. Principalmente a Maria, que se casou com o Juca da Paula e tiveram vários filhos, todos muito bem relacionados na cidade e todos amigos de infância e de futebol. Em razão do Juca ser conhecido por Juca da Paula, os filhos todos ficaram conhecidos como os D’Paulas.

ME recordo do Seu Zé Camilo desde a época em que vivíamos somente na Lapa. Ou seja, em redor da igreja e da Lapa de Nossa Senhora. Seu Zé morava ali onde hoje é a residência do meu amigo, Tião da Odília.  E o meu pai morava em frente.

Desde a hora em que a gente acordava de manhã era ouvindo as batidas do Seu Zé Camilo. Era a enxó, o machado, o serrote, o formão... enfim era a sinfonia das suas ferramentas, sussurrando as maravilhas que as suas mãos grossas de calos conseguiam produzir no dia a dia, talhando a madeira.

Lembro-me que ao chegar na sua casa, obrigatoriamente tinha de passar dentro da sua tenda de trabalho. Como se fosse hoje o vejo de cabeça baixa, sempre coberta por chapéu, batendo cadenciadamente o soquete no formão, rompendo a madeira bruta, talhando a peça desejada. Não podia passar sem pedir-lhe benção. Era o costume da época, os mais novos eram abençoados pelos mais velhos. O respeito era generalizado. E, exigido...

Lá na cozinha estava a D. Sanica, labutando com as suas coisas. Enquanto lavava algumas peças de roupas, asseava as vasilhas e vigiava à fervura das panelas no fogão a lenha. Fazia mil coisas ao mesmo tempo. Acho que isso era a razão de permanecer sempre magra e espertinha. De pronto oferecia um biscoito, um doce. Sempre tinha alguma coisa de comer para agradar as pessoas e em especial a meninada que frequentava a sua casa.

De idade igual a minha era e é o Geraldo. Éramos inseparáveis. Palmeávamos os grotões que circundavam a pequena Vila, desde o início deles até alcançarem o córrego do Pamplona, onde refrescávamos nas suas águas límpidas e frescas. Naqueles tempos os grotões também mantinham águas correntes quase perenes. Só secavam de tudo  se as chuvas atrasassem.

Com o Geraldo me lembro de uma passagem inesquecível.  A agricultura muito rudimentar, funcionava de uma maneira bem simples. Plantava-se o milho. Quando o milho já estivesse granado, ou seja, depois de uns noventa a cem dias de plantado, limpava-se a roça e plantava consorciado o feijão. Esse nascia, crescia envolvendo o pé de milho para nele se sustentar. A safra do feijão ainda seria primeiro do que o milho, pois o ciclo dele é bem menor.

Tanto meu pai como Seu Zé Camilo plantava as suas rocinhas de subsistências.

O ano de 1.956 foi muito chuvoso. As chuvas caíram copiosamente dentro do período normal e extrapolou adentrando o outono. Dessa forma alcançou o feijão na fase de colheita, impedindo que fosse colhido na forma tradicional. Arrancava-se os pés. Faziam as coivaras. Após secas são carregadas para os terreiros e batidas com varas, separando os grãos das palhas. Antes disso as bandeiras de feijão foram pegas pelas chuvas e a perda da safra foi inevitável. As sementes brotaram dentro das bajes.

Sem outra opção, pois naqueles felizes tempos não existiam as importações, ou colhia e entulhava o mantimento ou ficava sem. A única alternativa foi colher os feijões brotados e colocar a meninada desocupada a retirar os brotinhos dos caroços do feijão e espalhar dentro de casa ou em pequenos galpões para secar e armazenar assim mesmo.

Eu e o Geraldo do Zé Camilo ficamos ocupados um longo período desbrotando feijão e conversando coisas por coisas. Enquanto isto as traquinagens ficariam para outras oportunidades.

Voltamos ao Seu Zé Camilo.

Muito simpático e agradável, Seu Zé martelando, serrando, carpinteirando de modo geral, contava simultaneamente seus casos. Esmiuçava as suas idas e vindas de carro de boi a Patrocínio, Catiara e outros lugares, onde buscavam as mercadorias que por aqui não existiam. Era os arames farpados, tecidos, sal, querosene.  Vinham sempre de trem até naquelas localidades e daí eram baldeadas em carros de bois até aos mais variados centros consumidores. Segundo o Seu Zé gastava-se meses de viagem acompanhando os pachorrentos passos dos bois carreiros. Dizia do quanto eram bons os pousos, as passagens em balsa nos rios, as subidas e descidas de serras. Enfim era uma viagem aguardada e disputada pelos peões, pois todos queriam viver aquelas aventuras.

Sentado comodamente em uma tora de madeira e Seu Zé Camilo dando os finalmente numas chedas de um carro de boi que estava terminando de construir, o ouvia contar as suas travessuras de rapaz. Gabava-se de ter sido namorador. Todas as moças da região estariam ao seu dispor. Sempre foi um rapaz trabalhador, honesto e de bons princípios. Possuía todos os requisitos para ser um pretendente a chegar nos pés do Dom Elizeu, na ocasião da Festa da Lapa.

  • Especialmente, tinha uma muito bonita que era disputada pela rapaziada da região e ele, também, era um deles. Por isso passou a frequentar a casa da moça e até pernoitar por lá. Era bem recebido e bem visto pelos pais da donzela.

Lá naquela casa tinha o costume de moer a cana de açúcar, fazer melado, rapadura. Enfim aproveitar de tudo que ela produzisse. Tinha uma desvantagem, porque não tinha o engenho. A cana era moída numa engenhoca.

PARA quem não sabe, a engenhoca é o mesmo engenho de pau, só que as suas moendas, um pouco mais finas, ficam na horizontal. Ao contrário do engenho, que é movido por juntas de bois, a engenhoca é movida pelos braços dos homens. Numa das suas extremidades são feitas, manualmente, duas coroas endentadas, da mesma tora de madeira, que se mordem e, na medida em que vai rodando obriga a outra a rodar também. Na outra extremidade são trespassadas duas peças de madeira, onde a pessoa vai puxando e trocando-as de mão na medida que vão rodando as moendas, e a cana passa espremida. Daí o seu caldo escorre naturalmente para os galões ou para as tachas de cobre, que já estão nas suas trempes de barro, em um nível inferior.

Evidentemente que para rodar essas moendas, que vão pesando bastante na medida em que a cana é colocada entre elas, depende de ser uma pessoa de muita força. E o ainda jovem Zé Camilo, era tido como um dos rapazes de mais força da região.

OS seus futuros cunhados, eram muito arteiros e maldosos. Resolveram passar vergonha no futuro cunhado. Como fazer? Colocar mais cana do que o necessário e fazer com que ele não desse conta de rodar as moendas e passar por essa vergonha diante da prenda prometida.

E, ASSIM, fizeram. Encheram as moendas de cana e o Zé Camilo foi rodando e as moendas foram parando. Ele redobrou as forças e a peça de madeira onde ele segurava para rodar a engrenagem, em razão de tanta força acabou foi quebrando.

No outro dia os cunhados maldosos prometeram entre eles que dessa vez o Zé Camilo ia pagar o mico diante da irmã deles. Foram na capoeira próxima a casa deles e ajeitaram duas pequenas árvores de uma qualidade de madeira que dificilmente iria quebrar. Colocaram na cabeça da moenda que ficou praticamente inquebrável.

Foram todos bem cedinho para ao redor da engenhoca. Zé Camilo se posicionou e ainda gabou a qualidade das peças. Essas sim. Vão aguentar o tranco...

Não sabendo ele do que lhe aguardava.

Iniciou-se a moagem.

Zé Camilo rodava a engenhoca e os cunhados colocavam os pedaços de cana. A moça a tudo observava.

MALDOSAMENTE os cunhados entupetaram as moendas de cana e o Zé Camilo botava muque e rodava. Foi ficando devagar, mais rodava. Foi indo até parar de vez. E Zé Camilo chamou as forças que tinha e colocou tudo naquelas peças onde ele agarrava pra rodar as moendas.  Elas eram inquebráveis. De madeira da melhor qualidade resistiam,

Nós, ouvindo atentamente a sua narrativa. Ele esbarrou o serviço que estava fazendo, pois chegava no ponto culminante da história e resumiu:

Cheguei todas as forças que eu tinha. As moendas paradas em razão do absurdo de cana que tinham metido entre elas, começaram a rodar devagarzinho. Quando olhamos a cabeça da moenda onde estavam colocadas as peças de puxar, estava torcendo e foi até quebrar...

Quantas saudades, Seu Zé Camilo e D. Sanica. Duas pessoas inigualáveis. Muito ajudaram na construção da nossa pequena Vazante.

Reconhecimento? Só da família e amigos...

JOSÉ ANTÔNIO DE OLIVEIRA.  Um ilustre desconhecido?

Imagens do video e foto casal extraido no Facebook


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